“Não há como uma nação se reencontrar se 30% da sua população for sistematicamente rejeitada. Este é o tamanho do problema que o Brasil precisa enfrentar e superar”, escreveu o jornalista Ascânio Sêleme, ex-diretor de redação do jornal O Globo e ainda hoje um de seus principais articulistas, em sua coluna deste sábado.
A frase poderia ser reescrita de outra forma - e seria bem mais honesta e precisa. “Não há como uma nação se reencontrar se 30% da sua população for sistematicamente rejeitada. Este é o tamanho do problema que a Globo precisa enfrentar e superar”. Afinal, foi o grupo de comunicação da família Marinho que há vários anos decidiu liderar uma campanha midiática, em associação com setores do Judiciário, para marginalizar uma força política que, como o próprio jornal reconhece, representa 30% dos anseios da sociedade brasileira.
Os resultados do trabalho deste “gabinete do ódio” limpinho e cheiroso são conhecidos: um golpe de estado, em 2016, e uma eleição manca, em 2018, uma vez que os direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foram artificialmente subtraídos. Uma eleição, diga-se de passagem, que instalou no poder um governo de corte neofascista, que nutre grande hostilidade em relação à Globo e à mídia corporativa, que se diz portadora do chamado “jornalismo profissional”.
Portanto, o desafio da Globo é bem maior do que se reencontrar com 30% da sociedade brasileira que ela própria marginalizou - e ainda hoje marginaliza. Com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, o grupo de comunicação dos Marinho também passou a ser rejeitado pela extrema-direita, que enxerga na Globo uma força manipuladora - e não propriamente democrática. Ciente disso, o bolsonarismo claramente estimula o crescimento de outros meios de comunicação, como Record e SBT, por meio da publicidade oficial, e da CNN, com o privilégio nas informações de governo.
Hoje, portanto, a Globo enfrenta sua maior ameaça existencial. Perdeu público à direita e à esquerda, tem concorrentes de maior peso no entretenimento e no jornalismo e também se mostra incapaz de reagir ao avanço das plataformas de streaming, como Youtube, Netflix e Amazon. E se tudo isso não bastasse, os clubes de futebol, liderados pelo Flamengo, começam a se libertar do monopólio nas transmissões de futebol, também estimulados pelo governo federal.
Em seu artigo, Ascânio Sêleme afirma que “o ódio dirigido ao PT não faz mais sentido e precisa ser reconsiderado se o país quiser mesmo seguir o seu destino de nação soberana, democrática e tolerante”. É interessante o uso da palavra “soberana”, uma vez que o ambiente de intolerância semeado pela Globo foi extremamente útil para a destruição da soberania nacional. Todos sabem que o golpe de 2016 não foi dado apenas para que direitos trabalhistas e previdenciários fossem eliminados, mas também para que se alterasse o modelo de exploração do pré-sal e para que o Brasil fosse reenquadrado politicamente, sob o tacão imperial.
No entanto, o uso do conceito de soberania pela Globo pode ser uma tentativa de seduzir forças do campo democrático para uma aliança contra marcas internacionais, como a CNN, e as plataformas de streaming já citadas. No Brasil, a lei proíbe que grupos de comunicação sejam controlados por estrangeiros, mas essa legislação já foi ultrapassada pela tecnologia. E hoje, curiosamente, publicações internacionais, como BBC, El País e Intercept conseguem ser mais democráticas do que as empresas nacionais.
O fato é que a “Globo paz e amor”, que surge na coluna de Ascânio Sêleme deste sábado, enfrenta nos dias atuais a sua maior ameaça existencial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário